Ouvi alguém falar em autonomia e logo pensei sobre IA e ferramenta, e como fica a noção de autonomia na era da inteligência artificial. E, não obstante, cheguei à conclusão de que minha noção do que seja autonomia ainda está presa ao kantismo (filósofo Kant), que define autonomia como autolegislação racional-moral, aproximando a ideia de autonomia, de certa forma, à etimologia da palavra autonomia: autos – si mesmo, e nomos – lei.
Kant explora a autonomia dando um caráter universal e de independência, assim como explora os contextos políticos, de desejos e de autoridade, em seu complexo livro Metafísica dos Costumes. Mas a ideia de autonomia, com o passar dos tempos, vai além de Kant. O liberalismo, mesmo influenciado por ele (Kant), se desvia do pensamento kantista e veste a autonomia com uma roupa liberal, e foca na liberdade de escolha como mote para os direitos civis.
Portanto, com o liberalismo, autonomia passa a ser a capacidade de escolher seu próprio plano de vida. Isso mistura pluralismos e subjetividade, e os princípios universalistas – leis, ética e moral – ganham um foco mais personalista, o que parece até conferir um caráter absoluto ao personalismo.
Contudo, os séculos XX e XXI são acompanhados do conceito de autonomia relacional, em que a autonomia não é isolada, mas construída em relações e contextos. Ou seja, influências sociais e culturais, de certa forma, moldam a identidade, e entram nesse processo as escolhas possíveis de serem feitas. A autonomia passa a ser a capacidade de autodeterminação em interdependência, com seus subtópicos: bioética, direito e psicologia comportamental.
Vou passar o olho no dicionário para ver o que ele diz sobre autonomia. No dicionário, autonomia é s. f. – capacidade de governar-se pelos próprios meios; direito reconhecido a um país de se dirigir segundo suas próprias leis; direito de um indivíduo tomar decisões livremente; independência moral ou intelectual; ou o direito de reger-se segundo leis próprias.
Pois bem, quando penso em autonomia, tomo como referência um conceito amplo que busque unir diferentes tradições filosóficas. Portanto, vejo que a autonomia é a capacidade de autodeterminação construída a partir dos próprios valores e objetivos, considerando tanto as condições individuais quanto os contextos técnicos, sociais e culturais que influenciam nossas escolhas. Nesse sentido, ela nunca é absoluta, mas sempre envolve algum nível de relação e dependência de recursos e circunstâncias.
Contudo, não podemos deixar de lado as ferramentas da labuta. As ferramentas, nesse cenário, devem funcionar como meios para ampliar a autonomia. Vou usar o exemplo de ferramentas antigas, mas que ainda estão presentes em nosso dia a dia. O formão, o pincel ou a caneta Bic são exemplos de instrumentos que, por sua simplicidade e acesso direto, permitem que a criatividade e a técnica humana se manifestem sem grandes intermediários. Essas ferramentas exigem habilidade, prática e intenção. A realização obtida com seu uso decorre da relação direta entre gesto e resultado.
Não obstante, a inteligência artificial é também uma ferramenta, mas de natureza diferente. Sua sofisticação tecnológica permite ampliar nossas capacidades em áreas como criação artística, análise de dados e resolução de problemas complexos. Entretanto, por exigir infraestrutura avançada: energia, processamento, redes e manutenção constante, ela introduz um nível maior de mediação e dependência externa. Isso não significa que reduza necessariamente a autonomia, mas que a reconfigura: o usuário se torna coautor junto a um sistema cuja lógica e funcionamento influenciam o processo e o resultado. E nessa questão eu insiro minha dúvida: como será a noção de autonomia na era da inteligência artificial?
Mas vou fazer um meio campo e relativizar minha noção de autonomia, por eu achar um tanto purista. Assim, tanto ferramentas clássicas quanto a IA podem promover autonomia, mas em graus e formas distintas. Ferramentas simples oferecem autonomia mais direta e física; ferramentas tecnológicas complexas oferecem autonomia ampliada em alcance e escala, porém mais condicionada por estruturas externas. Em todos os casos, a autonomia é relacional, definida, por assim dizer, pelo equilíbrio entre as capacidades pessoais e os contextos técnicos, sociais e culturais que sustentam a ação.
Mas não posso passar pano quanto à questão que envolve poder, tanto no quesito autonomia quanto na utilização das ferramentas. Isso porque a existência de ferramentas marca e define o avanço civilizacional de um povo, o que o leva a uma autonomia. Os povos que não dominavam o ferro estiveram, historicamente, em desvantagem militar e econômica diante daqueles que dominavam sua forja. Por isso, a palavra ferramenta implica, ainda que nas entrelinhas, uma noção de poder, de progresso e de domínio tecnológico, cultural e civilizacional; e portanto, também, os conflitos de classes.
Hoje falamos de ferramentas digitais, ferramentas que processam ideias e outras tarefas. Esses desdobramentos conceituais das ferramentas digitais não negam o passado; ao contrário, edificam a antiga ideia de algo que permite realizar uma tarefa ou, mais profundamente, de instrumentalizar meios criativos ou de poder que ampliam a autonomia de um grupo que tem o domínio tecnológico. São ferramentas de poder que solidificam a autonomia de um grupo ou de uma nação.
No contexto de uma autonomia liberal, um escultor, com seu formão, pode trabalhar a madeira onde quer que esteja e queira estar. Um pintor, com seu pincel, pode criar livremente e fazer uma grande obra sem depender de energia elétrica, servidores ou algoritmos. E um escritor pode criar uma grande obra com uma caneta Bic.
Esses instrumentos clássicos pertencem ao mundo físico e simbólico, e são extensões diretas das mãos, pensamentos e habilidades humanas, sem a necessidade de uma infraestrutura racional, complexa e externa para funcionar de acordo com a capacidade técnica e intelectual de cada um. É ter condições e recursos para agir de acordo com valores e objetivos próprios. Nesse caso, a autonomia está presente.
Embora a IA muitas vezes seja eficiente, ela exige suporte tecnológico constante: eletricidade, processadores, dados armazenados em redes e acesso a sistemas que regulam sua própria funcionalidade, que dependem de todo um conjunto de processos técnicos, políticos e tecnológicos para funcionar. Além disso, afeta o meio ambiente, como no uso intensivo de água e suas consequências. Seu uso, portanto, nunca é totalmente independente, sem falar que também impacta o futuro em vários sentidos.
Com isso, não estou demonizando e dizendo que a IA não seja uma boa ferramenta, assim como o formão, a Bic e o pincel são. Porém, vejo que a IA pode limitar a autonomia e a percepção. Sendo um tanto simplista, vejo que o formão e o pincel, por exemplo, nos dão a sensação de que o trabalho é resultado direto da nossa habilidade, esforço e imaginação simbólica e criativa.
Já com a IA, vejo que parte do processo não é totalmente nossa. Quando criamos algo com valor técnico e criativo, isso envolve sonhos e desejos de realização, e a marca desses sonhos e desejos fica embrenhada no processo como um registro da própria existência. Penso que eles geram satisfação emocional por estarem integrados aos meios técnicos, à habilidade, à experiência de vida e também ao prazer da conquista artística e intelectual. É essa sensação de autonomia que a IA, em seu processo, não proporciona.