sábado, 9 de agosto de 2025

Autonomia na era da IA


Por Adu Verbis 

Ouvi alguém falar em autonomia e logo pensei sobre IA e ferramenta, e como fica a noção de autonomia na era da inteligência artificial. E, não obstante, cheguei à conclusão de que minha noção do que seja autonomia ainda está presa ao kantismo (filósofo Kant), que define autonomia como autolegislação racional-moral, aproximando a ideia de autonomia, de certa forma, à etimologia da palavra autonomia: autos – si mesmo, e nomos – lei.

Kant explora a autonomia dando um caráter universal e de independência, assim como explora os contextos políticos, de desejos e de autoridade, em seu complexo livro Metafísica dos Costumes. Mas a ideia de autonomia, com o passar dos tempos, vai além de Kant. O liberalismo, mesmo influenciado por ele (Kant), se desvia do pensamento kantista e veste a autonomia com uma roupa liberal, e foca na liberdade de escolha como mote para os direitos civis.

Portanto, com o liberalismo, autonomia passa a ser a capacidade de escolher seu próprio plano de vida. Isso mistura pluralismos e subjetividade, e os princípios universalistas – leis, ética e moral – ganham um foco mais personalista, o que parece até conferir um caráter absoluto ao personalismo.

Contudo, os séculos XX e XXI são acompanhados do conceito de autonomia relacional, em que a autonomia não é isolada, mas construída em relações e contextos. Ou seja, influências sociais e culturais, de certa forma, moldam a identidade, e entram nesse processo as escolhas possíveis de serem feitas. A autonomia passa a ser a capacidade de autodeterminação em interdependência, com seus subtópicos: bioética, direito e psicologia comportamental.

Vou passar o olho no dicionário para ver o que ele diz sobre autonomia. No dicionário, autonomia é s. f. – capacidade de governar-se pelos próprios meios; direito reconhecido a um país de se dirigir segundo suas próprias leis; direito de um indivíduo tomar decisões livremente; independência moral ou intelectual; ou o direito de reger-se segundo leis próprias.

Pois bem, quando penso em autonomia, tomo como referência um conceito amplo que busque unir diferentes tradições filosóficas. Portanto, vejo que a autonomia é a capacidade de autodeterminação construída a partir dos próprios valores e objetivos, considerando tanto as condições individuais quanto os contextos técnicos, sociais e culturais que influenciam nossas escolhas. Nesse sentido, ela nunca é absoluta, mas sempre envolve algum nível de relação e dependência de recursos e circunstâncias.

Contudo, não podemos deixar de lado as ferramentas da labuta. As ferramentas, nesse cenário, devem funcionar como meios para ampliar a autonomia. Vou usar o exemplo de ferramentas antigas, mas que ainda estão presentes em nosso dia a dia. O formão, o pincel ou a caneta Bic são exemplos de instrumentos que, por sua simplicidade e acesso direto, permitem que a criatividade e a técnica humana se manifestem sem grandes intermediários. Essas ferramentas exigem habilidade, prática e intenção. A realização obtida com seu uso decorre da relação direta entre gesto e resultado.

Não obstante, a inteligência artificial é também uma ferramenta, mas de natureza diferente. Sua sofisticação tecnológica permite ampliar nossas capacidades em áreas como criação artística, análise de dados e resolução de problemas complexos. Entretanto, por exigir infraestrutura avançada: energia, processamento, redes e manutenção constante, ela introduz um nível maior de mediação e dependência externa. Isso não significa que reduza necessariamente a autonomia, mas que a reconfigura: o usuário se torna coautor junto a um sistema cuja lógica e funcionamento influenciam o processo e o resultado. E nessa questão eu insiro minha dúvida: como será a noção de autonomia na era da inteligência artificial?

Mas vou fazer um meio campo e relativizar minha noção de autonomia, por eu achar um tanto purista. Assim, tanto ferramentas clássicas quanto a IA podem promover autonomia, mas em graus e formas distintas. Ferramentas simples oferecem autonomia mais direta e física; ferramentas tecnológicas complexas oferecem autonomia ampliada em alcance e escala, porém mais condicionada por estruturas externas. Em todos os casos, a autonomia é relacional, definida, por assim dizer, pelo equilíbrio entre as capacidades pessoais e os contextos técnicos, sociais e culturais que sustentam a ação.

Mas não posso passar pano quanto à questão que envolve poder, tanto no quesito autonomia quanto na utilização das ferramentas. Isso porque a existência de ferramentas marca e define o avanço civilizacional de um povo, o que o leva a uma autonomia. Os povos que não dominavam o ferro estiveram, historicamente, em desvantagem militar e econômica diante daqueles que dominavam sua forja. Por isso, a palavra ferramenta implica, ainda que nas entrelinhas, uma noção de poder, de progresso e de domínio tecnológico, cultural e civilizacional; e portanto, também, os conflitos de classes.

Hoje falamos de ferramentas digitais, ferramentas que processam ideias e outras tarefas. Esses desdobramentos conceituais das ferramentas digitais não negam o passado; ao contrário, edificam a antiga ideia de algo que permite realizar uma tarefa ou, mais profundamente, de instrumentalizar meios criativos ou de poder que ampliam a autonomia de um grupo que tem o domínio tecnológico. São ferramentas de poder que solidificam a autonomia de um grupo ou de uma nação.

No contexto de uma autonomia liberal, um escultor, com seu formão, pode trabalhar a madeira onde quer que esteja e queira estar. Um pintor, com seu pincel, pode criar livremente e fazer uma grande obra sem depender de energia elétrica, servidores ou algoritmos. E um escritor pode criar uma grande obra com uma caneta Bic.

Esses instrumentos clássicos pertencem ao mundo físico e simbólico, e são extensões diretas das mãos, pensamentos e habilidades humanas, sem a necessidade de uma infraestrutura racional, complexa e externa para funcionar de acordo com a capacidade técnica e intelectual de cada um. É ter condições e recursos para agir de acordo com valores e objetivos próprios. Nesse caso, a autonomia está presente.

Embora a IA muitas vezes seja eficiente, ela exige suporte tecnológico constante: eletricidade, processadores, dados armazenados em redes e acesso a sistemas que regulam sua própria funcionalidade, que dependem de todo um conjunto de processos técnicos, políticos e tecnológicos para funcionar. Além disso, afeta o meio ambiente, como no uso intensivo de água e suas consequências. Seu uso, portanto, nunca é totalmente independente, sem falar que também impacta o futuro em vários sentidos.

Com isso, não estou demonizando e dizendo que a IA não seja uma boa ferramenta, assim como o formão, a Bic e o pincel são. Porém, vejo que a IA pode limitar a autonomia e a percepção. Sendo um tanto simplista, vejo que o formão e o pincel, por exemplo, nos dão a sensação de que o trabalho é resultado direto da nossa habilidade, esforço e imaginação simbólica e criativa.

Já com a IA, vejo que parte do processo não é totalmente nossa. Quando criamos algo com valor técnico e criativo, isso envolve sonhos e desejos de realização, e a marca desses sonhos e desejos fica embrenhada no processo como um registro da própria existência. Penso que eles geram satisfação emocional por estarem integrados aos meios técnicos, à habilidade, à experiência de vida e também ao prazer da conquista artística e intelectual. É essa sensação de autonomia que a IA, em seu processo, não proporciona.



segunda-feira, 28 de julho de 2025

Os Detectores de textos e os falsos positivos e os falsos negativos



Por Adu Verbis

Quando surge uma nova tecnologia, é natural pensar que ela seja útil mesmo antes de saber se o que promete será de fato entregue. E, nesse caso, falo de IA, em especial do chamado detector de texto. É uma ferramenta usada na verificação de textos, com o objetivo de identificar se um texto foi feito manualmente por um ser humano ou gerado por IA.

Com a ascensão de modelos de linguagem baseados em inteligência artificial, como o ChatGPT e outros tantos, também surgiu o chamado detector gerado por IA. O impacto real do uso desses detectores no mundo da escrita, da educação e da produção intelectual vem sendo voltado para comprovar autoria ou até identificar se um texto foi plagiado. Também se aplica no que se chama de humanização de um texto. Ou seja, a própria IA confere ao texto um padrão mais humanizado. Isso quer dizer que o texto humanizado está mais propenso a erros e às nuances da escrita feita manualmente.

Qual o conceito por trás da detecção por IA? Bem, como já disse, detectores de IA são ferramentas criadas para analisar um texto e estimar a probabilidade de ele ter sido escrito por um ser humano ou por uma inteligência artificial. Em teoria, parece simples e eficiente, e promete proteger a integridade de conteúdos acadêmicos, criativos, além de identificar possíveis fraudes ou mesmo o uso indevido (num sentido fraudulento) de ferramentas automatizadas.

Vou repetir o conceito para que eu mesmo possa decorar. Essas ferramentas se baseiam em padrões linguísticos, estatísticos e estilísticos. Portanto, avaliam se há excesso de previsibilidade lexical, o que é chamado de baixa perplexidade, ou pouca variação entre frases, o que se chama de baixa burstiness, além de estruturas sintáticas que soam, por assim dizer, automatizadas.

Segundo o que li, frases como "Devemos aproveitar cada momento" ou "A felicidade está nas pequenas coisas", mesmo sendo comuns na linguagem humana, são frequentemente classificadas como coisa da IA. Isso por serem simples demais. Mas você se pergunta: e os humanos que, de fato, escrevem de maneira simples demais? E eu me pergunto: por que as ferramentas de detecção de texto logo usaram um padrão simples para estimar a validade de um texto? Penso que isso tem relação com o fato de que o ser humano, mesmo simples, é complexo em termos de linguagem.

Portanto, ferramentas como GPTZero, Turnitin AI Detector, Copyleaks e Originality.AI vêm se popularizando entre universidades, empresas e editoras. Contudo, junto com o uso frequente dessas ferramentas de detecção de texto, talvez estejam surgindo também limitações que penso que precisam ser discutidas com atenção e acuidade, para não gerar constrangimentos e injustiças com criadores de conteúdo que são honestos e se esforçam para escrever um texto, e acabar tirando o mérito do criador e dando para a IA, que apenas classifica se um texto foi escrito manualmente ou gerado por inteligência artificial.

Vou aqui ser repetitivo, mas paciência. A aplicação da ferramenta de detecção de IA, segundo especialistas em IA, tem como foco manter a transparência sobre o uso de inteligência artificial e, não obstante, coibir plágios disfarçados e garantir que produções avaliativas reflitam, de fato, o esforço do autor humano. Mas, como sempre tem um contudo e outros tantos poréns, na prática, a situação é bem complexa no tocante à eficiência dos detectores de texto.

Tanto a vida, assim como a IA, têm seus paradoxos; e paradoxos há de pintar por aí. Pois surge então o paradoxo do texto bem escrito, que antes era avaliado por seres humanos iniciados em textos complexos e criativos. Porém, hoje, os textos 100% humanos, e ditos bem escritos, com coesão e clareza, estão sendo atribuídos como coisa de IA.

Isso acontece porque, podemos dizer, ironicamente, que a boa escrita, aquela que evita o tal ruído, isto é, erros gramaticais, frases truncadas, está mais próxima dos textos humanos, e a IA se aproxima da perfeição. Claro, perfeição técnica, mas não 100% criativa.

Nesse labirinto da linguagem entre humanos e IA, e na eficiência dos detectores de texto, também existe a probabilidade dos falsos positivos – texto escrito por humano, mas a ferramenta erra e diz que foi por IA. Os falsos positivos não são raros. Escritores, estudantes, jornalistas e professores honestos, que conhecem a labuta que é construir um texto, podem ser impactados por avaliações equivocadas.

Um texto 100% autoral e, por assim dizer, artesanal pode ser invalidado por ter qualidade demais ou se aproximar do padrão de texto construído pela IA. Como diria o poeta: "Outras palavras", e, em outras palavras, quanto melhor a escrita, paradoxalmente, ela pode ser suspeita. Isso porque qualidade, no século 21 e nos demais por vir, passa a ser sinônimo de IA.

E não obstante, a IA está mais propensa a reconhecer um texto de qualidade como um texto gerado por IA, já que são poucos os seres humanos capazes de atingir a perfeição técnica de uma IA. Porém, o ser humano tem sua grande qualidade, que é a criatividade aliada a um talento nato ou a um talento fabricado pelas técnicas das oficinas de autoajuda.

Vou aqui exemplificar um caso em que o detector, ao ser testado numa verificação de texto gerado por IA e manualmente escrito por humano, confundiu os dois textos.

Vamos ao poema 1, com frases diretas e previsíveis:

A vida é feita de dias.
Alguns são bons, outros são ruins.
Devemos aproveitar cada momento.
A felicidade está nas pequenas coisas.

O resultado deu 90% gerado por IA, principalmente por conta das frases "devemos aproveitar cada momento" e "a felicidade está nas pequenas coisas". O detector leu a simplicidade como artificialidade.

Agora vamos ao poema 2, um poema ambíguo e sensorial:

Amanheceu como se o céu
tivesse esquecido de terminar a noite.
O cheiro do café não era novo,
mas parecia infância.

O resultado foi 10% IA e 90% humano. Isso por apresentar maior imprevisibilidade, metáforas e um ritmo poético que se afasta, por assim dizer, da clareza excessiva, típica de modelos automatizados. Podemos pensar que a própria natureza da escrita criativa desafia a capacidade das ferramentas de distinguir autorias com precisão.

Isso pode levar a dilemas profundos e complexos, comuns à linguagem humana nesse contato com a IA, que aprende e apreende com o humano, mas tem capacidade de superar o humano tecnicamente.

Talvez o problema dos falsos positivos seja superado no futuro, mas, por enquanto, é um dos maiores desafios dos detectores de texto gerado por IA. O julgamento feito pelos detectores é realizado com base em padrões linguísticos estatísticos, não em intenção, contexto ou autoria real. Ou seja, você pode ser 100% autor de um texto, contudo, um detector, baseado em padrão linguístico, pode dizer que você tem apenas 50% de autoria do texto.

Eu sou um tipo eticamente neurótico. Se eu faço uma coisa e essa coisa se desviar 0,01% do meu padrão ético, eu fico louco por achar que fiz alguma coisa errada. Pois eu passei a usar IA para revisar meus textos, isso porque não tenho uma formação acadêmica 100% decente. E, nessas revisões, descobri por meio das verificações usando detector de texto que meus textos foram contaminados pelo padrão da IA através das revisões. Portanto, eu fiquei neurótico com isso.

Um exemplo que percebi nos meus textos revisados por IA e verificados com ferramentas como o Grammarly, ou o próprio GPTZero, é que, mesmo que a ideia, estrutura e conteúdo sejam totalmente autorais, o uso de ferramentas auxiliares de correção levava a uma classificação automática como IA, gerando assim insegurança e desqualificação injusta do texto. Um exemplo de texto que eu escrevi, e que na revisão deu como suspeito por ser classificado como se fosse gerado por IA:

"Mesmo assim, sigo tentando entender esse mundo volátil. E, nos últimos dias, uma dúvida ficou martelando na minha cabeça: afinal, a frutose é vilã ou aliada?"

O trecho acima, mesmo sendo claramente, inclusive com meu tom coloquial e hesitante, foi marcado como "suspeito" (gerado por IA). Ou seja, a sensibilidade, o ritmo da dúvida, a cadência pessoal, tudo isso se perdeu nos cálculos da ferramenta de verificação de texto.

Devemos pensar e repensar o papel dos detectores e torcer para que os detectores não punam os criadores de textos que labutam diariamente para construir um texto. Porque escrever não é tão simples como jogar uma ideia na IA e ela transformar num texto que apresenta conceito e forma, mas não apresenta o sentimento e a emoção vividos por cada criador de texto. Escrever um texto é mais do que escrever um texto, isso se você me entende.

Eu considero a IA como um projeto dadaísta que vem encantando com seus conteúdos dadaístas. Portanto, a questão não é se devemos usar detectores de IA, mas como e quando. Se mal aplicadas, essas ferramentas deixam de proteger a integridade acadêmica e passam a violar a integridade dos autores honestos e trabalhadores. Pois, em vez de combater a fraude, podem também marginalizar produções legítimas, principalmente de autores que dominam bem a escrita.

Isso porque a IA vem dominando a escrita tecnicamente e construindo um padrão refinado. E os textos refinados, verificados pelos detectores de texto, podem se tornar "suspeitos" perante a IA. A IA não pode tirar os méritos humanos pra si.

Podemos pensar que a escrita do futuro será uma escrita híbrida e com o apoio de editores de IA. Quero dizer com isso que os editores de IA não podem usurpar pra si a linguagem humana, mas, se possível, ajudar a detectar os criadores desonestos intelectualmente.

Os detectores têm seu valor, mas quem utiliza os detectores precisa ter capacidade de ir além de uma verificação feita por IA e não deixar que os detectores se tornem os juízes definitivos. A leitura humana, o olhar crítico e o contexto precisam ter prioridade.

Num cenário onde a IA se torna cada vez mais presente no processo criativo, o desafio não é só identificar quem escreveu, mas como escreveu e por quê. Afinal, nem toda frase clara é artificial. Nem todo paradoxo é indecifrável. Nem todo texto rebuscado é humano, mas o ser humano tem um estilo próprio em seu rebuscamento. E a boa escrita, com ou sem IA, deve continuar. 

O que não pode é a IA punir injustamente autores que trabalham honestamente pra escrever um texto.

sábado, 26 de julho de 2025

A cientista entre e o niilismo alimentar e a bomba atômica da frutose


Por Adu Verbis

Sou um leitor comum, desses que acompanham colunas feitas às pressas e lidas com mais pressa ainda. Textos que tentam dar conta de um mundo cada vez mais incerto, onde a pergunta “o que faz bem e o que faz mal?” raramente tem resposta direta. Mesmo assim, sigo tentando entender esse mundo volátil. E, nos últimos dias, uma dúvida ficou martelando na minha cabeça: afinal, a frutose é vilã ou aliada?

Essa dúvida foi ficando mais clara depois de ler uma coluna da cientista Suzana Herculano-Houzel, publicada na Folha de S.Paulo, em que ela fala sobre a frutose, o açúcar presente nas frutas, no açúcar refinado e em produtos industrializados, como os refrigerantes. A ideia central do texto é clara: frutose em excesso faz mal. Mas a autora também pontua que, em certas situações, a frutose pode ter uma função útil no organismo.

Eu entendi o que ela queria dizer, mas não posso deixar de mencionar que o texto exigia atenção. Talvez estivesse mesmo um pouco carregado numa “sobrecarga de frutose” para os neurônios do leitor. E aí fiquei pensando: quando não entendemos um texto, a culpa é de quem escreve ou de quem lê?

No entanto, o texto da cientista Suzana Herculano-Houzel gerou desconforto entre leitores. Muitos acusaram a autora de colocar frutas e refrigerantes no mesmo patamar. Alegaram que o texto confundia e não explicava bem as diferenças entre a frutose natural (das frutas) e a frutose adicionada (de produtos industrializados). Alguns sentiram que ela estava demonizando as frutas; outros entenderam tudo ao contrário.

A verdade é que nem sempre é fácil entender ciência. E nem todo cientista consegue (ou quer) explicar as coisas de modo acessível. A ciência raramente responde com um “sim” ou “não”. Quase sempre diz: “depende”. Mas, para quem busca orientação sobre o que comer, o “depende” gera mais angústia do que esclarecimento. E o leitor, perdido entre tantas exceções, às vezes reage com hostilidade.

A frutose não é “boa” nem “má” por si só. As frutas, que contêm frutose, são saudáveis no contexto de uma alimentação equilibrada, pois trazem fibras, vitaminas, antioxidantes e água. Mas isso não significa que se deva comer frutas em excesso. Assim como é evidente que refrigerantes ricos em frutose livre, sem fibras ou nutrientes, fazem mal, principalmente quando consumidos diariamente e sem noção do que se está a consumir.

O corpo humano produz frutose internamente (não falo como cientista, não sou, mas li sobre) a partir de outros nutrientes, como a glicose ou até certos aminoácidos. Isso ocorre, por exemplo, quando ingerimos calorias em excesso de forma constante. Ou seja: o problema não é só o que comemos, mas o quanto comemos e com que frequência. A alimentação moderna, marcada por consumo frequente e calórico, força o fígado a lidar com frutose produzida pelo próprio organismo, o que também pode causar obesidade, resistência à insulina e a tal esteatose hepática.

A cientista respondeu às críticas dos leitores numa segunda coluna – “Frutose para o bem e para o mal”. Ali, ela reafirma que o excesso é o real vilão, seja na forma de fruta ou de refrigerante. No entanto, confesso que essa segunda coluna me incomodou. Não pelo conteúdo, mas pelo tom emocional, que me pareceu menos científico e mais defensivo. Ela pareceu se incomodar com a reação dos leitores e respondeu como quem se sentiu atacada. Mas, como muitos leitores são de fato agressivos, é possível que ela tenha sido mesmo atacada de forma desrespeitosa. Ainda assim, acho que faltou a ela, talvez, uma escuta mais científica e menos emocional com o leitor que simplesmente não entendeu o contexto da frutose nas frutas e nos refrigerantes ou mesmo sobre a dinâmica da frutose no corpo.

Talvez a cientista tenha se sentido incompreendida ou ofendida. E, no meio disso tudo, a frutose virou símbolo de algo maior: a dificuldade de construir diálogo claro em um mundo sobrecarregado de informações, e de intenções, que agem como frutose. Há ainda outro risco nesse mundo sobrecarregado de informações: o niilismo alimentar. Muita gente, cansada das dúvidas, parte para o “tanto faz”. Se até frutas fazem mal, então por que me preocupar? “Tudo mata mesmo.” É um raciocínio compreensível, mas perigoso. A frustração pode levar ao abandono completo de critérios. E aí deixamos de tentar fazer o melhor, apesar das constantes dúvidas.

A tal “bomba atômica da frutose”, no fim das contas, talvez não esteja nas frutas nem no refrigerante. Está na forma como consumimos alimentos, e também informações: rápido, superficial, sem tempo para pensar, refletir, escutar. Queremos verdades fáceis, mas o que a ciência nos oferece, quase sempre, é complexidade. Porque o processo de produção de saber é complexo. E viver bem exige lidar com isso: com a dúvida, a nuance, a responsabilidade de pensar por conta própria ou com a ajuda da ciência.

Como leitor, não tenho todas as respostas. Mas sigo com a vontade de entender melhor, comer melhor e na quantidade certa. E sigo acreditando que nem o cientista precisa ser arrogante, nem o leitor deve ser tratado como ignorante, ou ser agressivo sem motivo. Pois há complexidade no saber. Viver é complexo, e nem todos abraçam essa complexidade de forma segura e completa. A vida e o saber não se resumem a uma receita ou a uma frase de efeito.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

As Mulheres na Obra de Vermeer





Por Adu Verbis

Eu sou a mulher que habita o silêncio dos quadros de Vermeer. Sou a que lê cartas diante da luz da janela, a que afina o alaúde num fim de tarde imóvel, a que serve leite como se o mundo dependesse disso. Não tenho nome, nem idade. Sou todas e nenhuma. Vivo em quartos onde a luz pousa como um segredo, onde o tempo parece esquecer de passar. Ali, enquanto o sol escorre pelas janelas da esquerda, eu existo como pigmentos em suspensão.

Fui pintada em meio à rotina, mas Vermeer viu em mim algo mais. Ele me deu espaço, quietude e uma dignidade com sombras azuladas. Quando todos olhavam para guerras, reis e naufrágios, ele olhou para mim. Uma mulher comum, num instante qualquer, como se quisesse me transformar em eternidade.

Às vezes, leio uma carta de amor. Às vezes, apenas seguro algum objeto como se fosse um utensílio feito de luz e de pensamento. Há momentos em que o mundo todo cabe numa pérola em minha orelha, e eu sou luz refletida pela pérola. Outras vezes, sou refletida em espelho. Talvez esse eu refletido não me pertença, mas mesmo assim, meu reflexo está no espelho como se eu fosse também o reflexo e o espelho.

Não sou musa, nem nunca pensei em ser musa. Dizer que sou a presença dos contornos feitos de cores fica de bom tom. Não sou objeto nem sujeito. Quem sabe, sou enigma... Vermeer não me idealizou. Talvez eu seja seu pensamento. Ele queria que eu falasse alguma coisa para ele escutar, mas preferiu pintar meu silêncio como quem escuta uma oração, ou mesmo escutava o pulsar do meu coração, e assim esquecia de pintar a minha voz.

Enquanto outros pintores tornavam as mulheres alegorias, ele me fez, e fez as outras que sou, reais enquanto reflexos. Com mãos firmes e olhos atentos, captou o peso da espera, o calor de um gesto, a luz na curva dos ombros. Mostrou que dentro de cada tarefa trivial precisa haver beleza, para não estancar o cotidiano, como se dentro de cada mulher houvesse um universo que ninguém ousa ver, mas Vermeer ousava e queria ver este universo.

Talvez seja isso que você sente ao olhar para mim e para nós. Que algo está prestes a acontecer diante da dimensão do silêncio. Ou que algo já aconteceu e se perdeu em algum lugar. E quando você voltar a olhar pra mim, e pra nós, você pode se encontrar ou se perder. Estamos ali, num agora, ou num agora eterno.

Vermeer não tinha pressa. Quero dizer, tinha. Mas era uma pressa que era fixada na tela. Ele se foi, e nós ficamos no agora dos museus. O tempo, pra ele, era uma luz que, paradoxalmente, pode não iluminar o mundo. Mas nessa luz que não revela o mundo, há pensamento, que também é um elemento da pintura feito de luz. Uma luz que pode iluminar o mundo, assim como uma vela que se acaba pelo próprio consumir.

Esse mundo está no modo como meus olhos evitam o espectador, no peso suspenso da mão que hesita voar, na pausa entre um gesto e outro gesto já esquecido pelo movimento. Vermeer não pintou apenas corpos e objetos. Pintou o que está entre eles: o espaço onde o pensamento respira, onde a alma se esconde, demora e mora.

Lendo Maurice Merleau-Ponty, li que “a pintura torna visível aquilo que invisivelmente insiste no mundo”. E é isso que Vermeer fez comigo e com as outras que sou. Ele não pintou só o meu rosto ou minhas mãos. Ele pintou o que me atravessou e atravessa. Em resumo, ele criou minha alma de luz e sombra. O seu olhar vê a minha luz e a minha sombra.

Lendo Walter Benjamin, entendi que “a aura da obra de arte está na distância próxima”. Ora, isso pode querer dizer que a distância entre seu olhar e meu ser é a subjetividade da luz.

Bem, quem foi Johannes Vermeer? Vermeer nasceu em 1632 e morreu em 1675. Foi um pintor holandês do século XVII, amplamente reconhecido por suas representações silenciosas e luminosas da vida doméstica. Em um universo pictórico composto por interiores ordenados, janelas laterais e gestos suspensos, eu e as outras mulheres que sou assumimos protagonismo absoluto.

Portanto, e talvez, Vermeer seja a visibilidade do invisível, como dizia Maurice Merleau-Ponty, em "O Olho e o Espírito", ao afirmar que “a arte nos dá o ser como o aparecimento visível do invisível”. Eu gosto disso: “a arte nos dá o ser como o aparecimento visível do invisível”. Me sinto essa coisa visível do invisível. Em Vermeer, essa visibilidade do invisível manifesta-se na forma como o pensamento, a espera e a consciência são corporificados em figuras femininas.

A Laura Mulvey, em seu ensaio clássico "Visual Pleasure and Narrative Cinema"(Prazer Visual e Cinema Narrativo), criticou o olhar masculino e chamou de "male gaze"(olhar masculino). Disse que o olhar masculino instrumentaliza e objetifica a mulher nas artes visuais. Acho, como uma mulher visível do invisível, que Vermeer, ao contrário, propõe um olhar que escuta o pulsar feminino. Em vez de erotizar ou narrar a mulher, ele a contempla em sua interioridade.

Vermeer não invade a figura feminina com um olhar dominador, mas a acompanha em sua imersão e talvez prisão, ou autoprisão. Há, portanto, uma ética na representação. Ou seja, quero dizer que não me sinto presa nem cifrada com o olhar do Vermeer. Eu sou a presença visível do invisível num agora quase eterno.

Também lendo Georges Didi-Huberman, entendi a ideia de que “a imagem pensa”. Ela (a imagem) não apenas representa, mas resiste, provoca e interpela. Por isso, as mulheres de Vermeer pensam dentro da pintura. Eu habito um tempo que não é o tempo linear do relato, mas o tempo suspenso do pensamento. A pintura, assim, torna-se espaço de interioridade, de ausência de acontecimento, onde “o nada” é, na verdade, uma plenitude que pulsa.

Não posso deixar de falar de Gaston Bachelard. Em sua "A Poética do Espaço", ele fala da casa como um espaço de devaneio, de proteção da alma sonhadora. Os interiores de Vermeer materializam esse conceito. As janelas, as cortinas, os mapas, os tapetes e os objetos não são apenas elementos decorativos, mas extensões da subjetividade das mulheres que sou. O ambiente não é cenário. É espelho.

Voltando ao Walter Benjamin. Ele, ao discutir a "aura" da obra de arte, a descreve como “a aparição de uma distância, por mais próxima que ela esteja”. As mulheres que sou são assim: tão próximas, tão reais, e ainda assim inalcançáveis. Elas se mostram, mas não se esgotam em si. Somos vistas, mas não capturadas. Há um mistério que permanece e que protege as mulheres que sou. Que mesmo diante da aparente simplicidade, ainda assim, é mistério.

As mulheres que sou, em Vermeer, não são apenas protagonistas de suas telas, mas também somos mediadoras de um pensamento sobre a imagem, o tempo e o ser. Por meio de uma pintura que privilegia o instante, a luz e o espaço interior. Portanto, Vermeer construiu figuras assim como eu e como as mulheres que sou porque pensamos, sentimos e refletimos. Por isso, a pintura torna-se, como escreveu Merleau-Ponty, um ato de pensamento visível.




Referências

  1. Merleau-Ponty, Maurice. O Olho e o Espírito. São Paulo: Ática, 2004.

  2. Didi-Huberman, Georges. Diante da Imagem. São Paulo: Contraponto, 2013.

  3. Mulvey, Laura. Visual Pleasure and Narrative Cinema. 1975.

  4. Bachelard, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

  5. Benjamin, Walter. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. São Paulo: Brasiliense, 1985.


sábado, 5 de julho de 2025

Banksy: A Mensagem Que Ocupa O Meio


Por Adu Verbis

Eu caminho pelas cidades como quem lê textos interrompidos. Em muros abandonados, fachadas discretas ou mesmo à margem de avenidas apressadas, descubro fragmentos de uma mensagem que se escreve no espaço. Nesse caminhar, a imagem de Banksy se forma em minha cabeça como se ele fosse íntimo. O artista anônimo, incógnito até hoje, é menos uma figura e mais um fenômeno ou, como diria Marshall McLuhan, um meio que se tornou a própria mensagem.

Banksy compreende o mundo como um campo de disputa simbólica e transforma a paisagem urbana em linguagem. Ao grafitar diretamente nos muros, ele faz do suporte parte da semântica: é impossível dissociar o “o quê” do “onde” e “como”. Um rato pintado numa esquina suja de Londres ou um balão em forma de coração que escapa das mãos de uma menina são mensagens que não poderiam existir em museus sem perder parte do impacto.

McLuhan dizia: “O meio é a mensagem”. Banksy parece levar isso ao limite: o espaço urbano não apenas contém a obra, mas a constitui. Não é mera moldura, é coautor. Quando o artista instala uma obra clandestinamente no MoMA ou vê sua tela se autodestruir logo após um leilão milionário, o meio físico vira performance conceitual.

A arte de Banksy resiste à neutralização, reaparece onde não é esperada, como se denunciasse a anestesia cotidiana. Adorno, ao discutir a indústria cultural, já nos alertava sobre a domesticação estética: Banksy caminha na contramão. Em “There is Always Hope” (Sempre há esperança.), onde uma menina deixa escapar um balão em forma de coração, a poesia da cena contrasta com a dureza do cimento urbano: é esperança e perda condensadas em uma única mensagem.

Em “Flower Thrower”(Arremessando de Flores), um manifestante arremessa flores em vez de pedras. A estética da revolta pacífica se impõe: Banksy substitui a violência por beleza, sem nunca perder o impacto visual da revolta. Já em “Kissing Coppers”( um beijo não policiado), dois policiais britânicos se beijam em uniforme completo. É subversão afetiva, crítica ao autoritarismo e talvez um pedido sutil por liberdade íntima.

Já em “Mobile Lovers” ( Amores virtuais), ele mostra um casal se abraçando, mas ambos olhando para seus celulares, o contato sem presença. E em “Napalm (Can’t Beat the Feeling)” (Napalm (Impossível não sentir), Mickey Mouse e Ronald McDonald seguram a menina vietnamita da famosa foto do ataque de napalm, expondo o grotesco sorriso do capitalismo sobre a dor histórica da menina.

Em sua obra mais recente, surgida em maio de 2025 na Rue Félix Frégier, em Marselha, Banksy pintou um farol cujos feixes de luz se alinham com a sombra de um balizador. O farol, símbolo de orientação e permanência, é transformado em um jogo visual que chama a atenção para si e sinaliza sua presença em diálogo com a realidade.

Banksy via Instagram

E lemos: “I want to be what you saw in me.” (Quero ser o que você viu em mim). Banksy se aproxima de uma introspecção quase amorosa, abrindo espaço para uma leitura subjetiva, na qual a mensagem parece um pedido de reconhecimento na solidão dos dias atuais, em que o meio já não é a mensagem, pois o meio se tornou virtual, e a mensagem, uma garrafa à deriva. Aqui, a garrafa pode ser entendida como as pessoas que circulam de um lado para o outro, levadas pelos oceanos – os celulares. E o farol sinaliza para as pessoas que ainda existe terra onde se pode aportar.

Banksy não é apenas um grafiteiro, um ativista ou um artista de rua. Ele é uma linguagem que se espalha pela pele das cidades. Um ruído visual que perturba a ordem, como queria Jacques Rancière ao defender a arte como redistribuição do sensível. 

Banksy é aquilo que aparece onde não deveria, que insiste em existir sem ser nomeado, que sabota a institucionalização do olhar. Em um mundo saturado de imagens controladas, ele devolve à imagem seu poder inquietante. Ele não quer ser celebrado: quer ser visto. E, ao ser visto, quer nos ver. Ele é a mensagem que nos olha de volta do muro.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Uma análise estrutural e temática do Poema {121} do livro Inutensílio: Poemas sem Préstimos



Por Adu Verbis


Poema {121}

Talvez todo poeta esteja diante de uma falésia,
Ou sofra de criptomnésia que beira a amnésia.
Quando os sentidos se avizinham em vis-à-vis,
Reduplica as prosas e as tramas num déjà-vu.

A dor, fosfórea e ácida, da confabulação da alma,
Chamas ao redor do corpo, que é pura flama.
Refiz o oco caminho feito de brasa e trava;
Por fim, me desvencilhei da figueira-brava.*

Talvez todo poeta esteja à beira,
À beira de uma falésia,
À beira de um abismo que não tem nome,
À beira de um eco que nunca termina.

Talvez todo poeta repita,
Repita os passos de outros homens,
Repita as palavras de outros séculos,
Sem saber, sem lembrar,
Sem distinguir entre sonho e vigília,
Entre memória e invenção.

E os sentidos colidem,
Face a face,
Espelho contra espelho,
Multiplicando prosas,
Tingindo as tramas de um tempo gasto,
De um tempo sem tempo.

A dor é fosfórica, ácida,
É uma chama fria ao redor do corpo,
Corpo que arde sem queimar,
Corpo de cinza que ainda insiste em ser flama.

Refiz o caminho,
O mesmo caminho,
Oco, ardente,
Pé sobre brasa,
Mão sobre trava,
Voz sobre silêncio.

E ao fim,
Sob a figueira-brava,
Onde tudo termina,
E tudo começa,
Eu me desvencilhei.
Ou pensei que me desvencilhei.
Ou sonhei que me desvencilhei.

E ao fim…
Ao fim,
Me desvencilhei da figueira-brava.

Ao revisitar o Poema {121}, que escrevi inspirado em Os Homens Ocos, de T. S. Eliot (na tradução de Ivan Junqueira, 1925), percebo como ele se estrutura em dois momentos bem definidos, ainda que fluam um para o outro com naturalidade. Nas duas primeiras estrofes, concentro um núcleo de ideias densas, quase um extrato filosófico – uma reflexão carregada de filosofia e metapoética. É nesse ponto que o eu-lírico se posiciona diante de uma “falésia”, símbolo do limite e do risco existencial, onde aflora a dúvida sobre a originalidade poética, sobretudo com a sensação inquietante da criptomnésia – a repetição inconsciente do que já foi dito por outros.

Essa jornada do eu-lírico, atravessando o caminho marcado pela travessia sobre brasas e pela figueira-brava, simboliza para mim a luta interna, a tentativa de transformação e superação. E, ao final, a dúvida permanece: “Ou pensei que me desvencilhei / Ou sonhei que me desvencilhei”. Essa ambiguidade traduz a incerteza existencial que permeia a criação, não se sabe se houve uma libertação verdadeira ou apenas uma impressão fugaz dela.

O diálogo com Eliot está presente em todo o poema, mas não como mera imitação. Retomo a temática do vazio criativo, a repetição e os ecos do passado, assim como a sensação de ciclo e fragmentação que marcam Os Homens Ocos. Porém, busquei atualizar essas questões para o contexto da crise criativa contemporânea, colocando meu eu-lírico como alguém que se questiona profundamente dentro da tradição poética que o antecede.

Não vejo a repetição no poema como um vício estilístico, mas como um recurso essencial para construir a memória e o eco poético que o poema aborda. Ao reiterar palavras, frases e imagens, tento recriar a sensação de déjà-vu e criptomnésia, essa dificuldade de separar o original do ressignificado. A repetição performa o próprio conteúdo, atravessando o tempo e interferindo no processo criativo, numa relação direta com a tradição modernista e com o próprio Eliot, para quem a repetição é fundamental na construção da memória cultural e da experiência fragmentada da modernidade.

Para mim, o poema {121} é, acima de tudo, uma tentativa de articular o conceito e a imagem, o intelecto e a emoção, a teoria e a experiência vivida. A opção por condensar o tema nas duas primeiras estrofes para depois expandi-lo deu ao poema uma estrutura orgânica, que conversa tanto com a reflexão quanto com a vivência da angústia da criação. É um diálogo que continuo, entre o vazio e a chama, entre a dúvida e o sonho, entre o que foi e o que ainda pode ser dito; e assim manter o diálogo entre vazio e chama, dúvida e sonho, passado e presente, e mantenho aberto, sem respostas definitivas, mas sempre vivo.


O Poema {121} tem como base o poema “Os Homens Ocos" ( figueira-brava), de T.S.Eliot – tradução de IvanJunqueira, 1925.

sábado, 21 de junho de 2025

Israel: entre a democrática e as raízes religiosas – será que Israel não é uma teocracia liberal?


Por Adu Verbis

Desde que comecei a me interessar pela política do Oriente Médio, Israel sempre me pareceu um caso peculiar. Um país que se apresenta ao mundo como uma democracia vibrante, moderna, com instituições sólidas e direitos civis assegurados. Mas, quanto mais me aprofundei, mais difícil ficou sustentar essa imagem de uma democracia plena. 

Existe no Estado de Israel uma camada quase invisível para quem observa apenas a superfície, especialmente quando a referência são os outros países da região, pois a essência religiosa do Estado é cuidadosamente trabalhada sob um verniz de democracia liberal.

Quando ouvi pela primeira vez o termo “teocracia liberal” aplicado a Israel, confesso que pareceu uma contradição. Afinal, teocracia remete a um governo dominado por líderes religiosos, enquanto liberalismo associa-se à separação entre religião e Estado, direitos civis garantidos e pluralismo. Mas a realidade pode ser mais complexa, e Israel é um exemplo perfeito dessa complexidade pluralista.

O que seria, então, uma teocracia liberal? É um regime onde elementos religiosos estruturam e fundamentam o Estado, influenciando leis, políticas e a identidade nacional, mas que ao mesmo tempo mantém instituições democráticas, liberdades civis e permite certa diversidade interna que aos olhos do mundo é uma vitrine democrática.

E ao ouvir a expressão Estado judeu, já começo a sentir o peso da contradição. Como conciliar um regime definido por uma identidade religiosa com os princípios universais de cidadania, igualdade e laicidade? Essa pergunta me acompanha sempre que observo decisões do parlamento israelense ou debates envolvendo partidos religiosos e sua teologia do Pentateuco.

Curiosamente, essa ambiguidade não é fruto do acaso, mas de uma engenharia política. Os fundadores de Israel, em sua maioria judeus europeus, eram seculares, educados em universidades ocidentais e familiarizados com o nacionalismo moderno. Mas entenderam desde cedo que a linguagem religiosa era um recurso poderoso para mobilizar pessoas, justificar reivindicações territoriais e garantir apoio internacional e formar uma comunhão em torno do tema Estado judeu.

Lembro que, ao ler pela primeira vez a Declaração de Independência de Israel, fiquei impressionado com o equilíbrio, ou talvez a tensão, entre o discurso dos direitos universais e as referências bíblicas. Era como se o texto tivesse sido cuidadosamente escrito para agradar tanto à ONU quanto aos rabinos. Essa duplicidade permanece até hoje como uma marca estrutural do Estado, alimentando não apenas suas contradições internas, mas também suas ambições geopolíticas.

Fico a imaginar como teria sido se o processo de fundação tivesse sido conduzido por judeus orientais (sefarditas e mizrahim), vindos do Marrocos, Iraque e Iêmen, com uma relação mais visceral à religião e menos influenciados pelo racionalismo e colonialismo europeu. Provavelmente, o Estado teria sido mais abertamente teocrático desde o início, talvez com uma configuração institucional mais próxima das sociedades religiosas do Oriente Médio, sem tanta preocupação em parecer uma democracia ocidental.

O que me parece mais revelador é como essa roupagem liberal, ao longo dos anos, se tornou um verdadeiro mecanismo de sobrevivência. Israel não é apenas um país para judeus europeus seculares. Hoje, convive com uma população ultraortodoxa em expansão, judeus orientais com tradições conservadoras e uma minoria árabe que, por sua simples presença e cidadania, desafia o projeto sionista. 

Sem um mínimo de pluralismo formal, o risco de colapso interno seria real, afinal, ser judeu não se resume apenas à religião; mas, paradoxalmente, a religião é a base ontológica da identidade judaica. Por outro lado, sem ao menos a aparência de uma democracia, o custo diplomático para sustentar a legitimidade do Estado judeu teria hoje outras configurações e pressões internacionais ainda maiores.

Ainda assim, apesar das eleições, da Suprema Corte ativa e da "liberdade de imprensa", não posso ignorar os sinais de que o eixo central da estrutura do país continua sendo a religião. Quem pode ser cidadão, quem pode se casar com quem, quais direitos as minorias podem reivindicar – tudo isso passa, direta ou indiretamente, pelo crivo das instituições religiosas, revestido por um verniz liberal.

A tensão entre a necessidade de parecer uma democracia plena e a realidade de ser um Estado fundado em uma identidade religiosa é uma linha tênue que Israel continua a percorrer. Não vejo como o país possa se desvencilhar do caráter teocrático que é sua essência. Ao olhar mais atentamente, percebo que o verdadeiro motor que sustenta o Estado não é a democracia, mas a religião, que utiliza a linguagem dos direitos civis para formar um Estado que oscila entre a democracia e a teocracia liberal.

Essa arquitetura institucional não é apenas uma curiosidade histórica; tem efeitos concretos no cotidiano. Desde o fechamento de serviços públicos no Shabat até a definição de quem pode ser reconhecido oficialmente como judeu, a religião permeia esferas que, em outras democracias, seriam regidas por princípios civis.

Nesse ambiente, manter uma imagem democrática com garantias mínimas de pluralismo e direitos civis tornou-se uma necessidade estratégica. Sem essa “vitrine liberal”, o Estado não conseguiria absorver as tensões internas dessa paradoxal combinação de teocracia e liberalismo. A questão, portanto, não é se Israel é uma teocracia liberal ou uma democracia plena, mas sim como equilibra pragmatismo político e identidade religiosa.

Israel vive uma tensão estrutural entre o desejo de ser reconhecido como uma democracia moderna e a realidade de ser um Estado fundamentado em uma identidade religiosa. Uma democracia onde a religião é critério de cidadania e onde instituições religiosas têm poder político real. Basta olhar com atenção para perceber que o eixo central do Estado é a religião, por isso, em tese e na prática, defino Israel como uma teocracia liberal.